Tenho muitos conhecidos, alguns amigos que espelham sua escolha de representação política pautados por valores morais, mais especificamente, guiados por suas crenças religiosas.
Nada demais e, principalmente, nada tenho a ver com isso.
Direito de cada um quando não tenta-se impor a coletividade seus preceitos, expandir suas convicções como uma imposição social.
Indissociável a quem tem fé em algo, ou alguma coisa, permitir-se ser pautado por isso nas questões gerais.
O que me indigna de verdade é a seletividade para aplicar estes tais valores.
Falando, especificamente, do cristianismo, a maior manifestação religiosa e, historicamente, principal influenciadora nos costumes e, por tabela, até leis e políticas públicas…
Mais um caso evidenciou como esta “fé cega, faca amolada” cria uma distorção de valores.
A princípio, uma onda de indignação varreu parte religiosa do Brasil. Tudo isso por conta de uma criança, vítima de abuso sexual, em 2020, que foi submetida a aborto em hospital de Recife.
Teve até corrente de oração na frente para impedir passagem de profissionais de saúde, “excomunhão” de médicos, e toda sorte de maldições jogadas contra os que ousavam desafiar os princípios religiosos do povo defensor da família e bons costumes.
Era uma menina de 10 anos que muitos entendiam, aliás, exigiam que mantivesse a gravidez.
Quase a mesma história de agora, onde outra criança de 11 anos está sendo obrigada a manter gestação por uma juíza catarinense, certamente, cheia de razões baseadas em sua fé religiosa.
No diálogo surreal a magistrada, que nem vou citar o nome para não manchar estas linhas, pergunta a menina se ela aceitaria dar a criança para adoção se o pai (estuprador) aceitasse.
É a famigerada revitimização da vítima.
A justiça sendo instrumento de massacre, tortura.
Nas redes muitas manifestações indignadas com a situação da menor, mas não poucas, também de apoio a decisão da juíza por um bem maior, a vida.
Naturalmente, que no caso específico, sequer se abre discussão.
Uma criança, mulher violentada ser obrigada a manter gravidez apenas por crença de alguns fanáticos de que isso é um desígnio/determinação de Deus?
Enfim, fora estes casos extremos, em que não consigo enxergar relativização, consigo entender, ou melhor respeitar o direito de serem contra o aborto em casos corriqueiros, pelo embate biológico em torno da vida e morte, guiados pela fé que os move.
Fato é que a inclinação política pautada por crenças, valores, moral (falsos, ou não) levam estas pessoas a negarem a esquerda e se alinharem a direita.
De acordo com aquela espécime de estilo” liberal na economia, conservador nos costumes”.
Confesso que este tipo de cristianismo me assusta.
Todo este “povo de bem e de fé” considera inaceitável a morte de um feto. Contudo, não se indigna com a situação dos “mortos de fome”!
Como agora, por exemplo, em que quase 35 milhões de brasileiros, mais de 15% dos compatriotas não tem, absolutamente nada para comer…
Quanto barulho proferido em torno dessa tragédia humana por estes cidadãos isolados, ou grupos organizados?
Que tipo de Cristo se apropriou da alma destes que colocam valores morais acima do senso de justiça social, do olhar humano, ou melhor, cristão, perante outro irmão.
Onde está aquele Jesus que repartiu pão, denunciou acúmulo de riquezas e também andou com prostitutas e desvalidos??
Sempre parecerá esdrúxulo a mim uma escala de valores onde questões morais se sobrepoem a princípios básicos de dignidade humana.
Não há premissa política mais relevante e urgente do que a justiça social, neste, ou em qualquer outro tempo.
Texto: Marcos Thomaz
Foto: Reprodução