Em uma decisão histórica, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu, na última quarta-feira (13), salvo-condutos para garantir que pacientes não sofram sanção criminal pelo cultivo doméstico de cannabis sativa destinado à extração do óleo com finalidade medicinal.
A decisão confirma a jurisprudência unificada das duas turmas de direito penal do tribunal, que já haviam reconhecido o direito à saúde dos pacientes que necessitam do uso terapêutico do canabidiol, uma das substâncias presentes na planta.
O colegiado considerou que, além de o cultivo não ter a finalidade de produzir ou comercializar entorpecentes, os pacientes dos casos analisados pela seção estão amparados não só por prescrição médica, mas também por autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importação do canabidiol, o que evidencia que a própria autarquia sanitária tem reconhecido a necessidade de uso do produto em contexto terapêutico.
A seção determinou a comunicação da decisão ao Ministério da Saúde e à Anvisa, com o objetivo de alertar as autoridades sobre a situação dos pacientes e a urgência de uma regulamentação estatal sobre o tema.
Mudança jurisprudencial
No voto acompanhado pela maioria, o desembargador convocado Jesuíno Rissato destacou que, em mudança jurisprudencial ocorrida em 2022, a Quinta Turma, alinhando-se a precedentes da Sexta Turma, passou a entender que a ausência de regulamentação estatal sobre o plantio de cannabis não pode prejudicar o direito à saúde dos pacientes, os quais têm de lidar com muita burocracia e com altos custos caso queiram importar o óleo medicinal.
Ainda segundo a Quinta Turma, a Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas) não proíbe o uso justificado e a produção autorizada do óleo medicinal, mediante procedimento predeterminado sujeito à fiscalização. Em relação às sementes necessárias para o plantio, os ministros consideraram na época que tanto o Supremo Tribunal Federal (STF) quanto o STJ se posicionaram no sentido de que elas não possuem o princípio ativo da cannabis sativa, de modo que o salvo-conduto para o plantio deveria proteger também a eventual importação de sementes.
Segundo Jesuíno Rissato, considerando que, nos casos analisados, o uso do óleo extraído a partir das plantas será destinado a fins exclusivamente terapêuticos, com base em receita médica e autorização de importação da Anvisa, deve ser impedida a repressão criminal sobre a conduta dos pacientes.
Casos concretos
Em um dos casos julgados pela Terceira Seção, o salvo-conduto diz respeito ao cultivo de 15 mudas de cannabis sativa, exclusivamente enquanto durar o tratamento do quadro de ansiedade generalizada do paciente.
O paciente relatou que sofre de ansiedade desde 2018 e que tentou diversos tratamentos convencionais sem sucesso. Em 2020, ele obteve autorização da Anvisa para importar canabidiol, mas os altos custos e as dificuldades logísticas inviabilizaram a continuidade do tratamento. Por isso, ele optou pelo cultivo doméstico da planta para extração do óleo.
O outro caso envolve um paciente diagnosticado com epilepsia refratária desde os dois anos de idade. Ele também obteve autorização da Anvisa para importar canabidiol e relatou melhoras significativas em seu quadro clínico após o uso do produto. No entanto, ele enfrentou problemas financeiros e burocráticos para manter a importação e decidiu cultivar seis pés de cannabis sativa em sua residência para produzir o óleo.
Nos dois casos, os pacientes apresentaram laudos médicos atestando a necessidade do uso do canabidiol e as dificuldades enfrentadas para obter o produto no mercado. Eles também afirmaram que não têm intenção de comercializar ou consumir a planta de forma recreativa.
Direito à saúde
Ao conceder os salvo-condutos, a Terceira Seção do STJ reafirmou o entendimento de que o direito à saúde dos pacientes prevalece sobre a proibição legal do cultivo de cannabis. O colegiado ressaltou que a decisão não implica a legalização da maconha no país, mas apenas reconhece uma situação excepcional e específica de pessoas que dependem do uso medicinal do canabidiol.
A seção também destacou que a decisão não autoriza o cultivo indiscriminado da planta, mas apenas o necessário para o tratamento dos pacientes, sob supervisão médica e fiscalização das autoridades competentes.
A decisão da Terceira Seção do STJ representa um avanço na discussão sobre o uso medicinal da cannabis no Brasil e abre precedentes para que outros pacientes na mesma situação possam pleitear o direito de cultivar a planta sem sofrer sanções criminais. No entanto, ainda há muitos desafios e incertezas sobre o tema, que demandam uma regulamentação mais clara e efetiva por parte do Estado.